Redações portuguesas não estão preparadas para lidar com a Inteligência Artificial

A esmagadora maioria dos jornalistas (83,8%) em Portugal nunca recebeu formação em Inteligência Artificial (IA), um "défice estrutural" que, segundo o Livro Branco sobre a IA no Jornalismo, ameaça a qualidade da informação e a sustentabilidade das empresas mediáticas no país.
Filipe Caetano Editor
15 dez. 2025, 16:15

Livro Branco
Fotografia: Livro Branco da IA no Jornalismo

O estudo de âmbito nacional, coordenado pela Nova FCSH e financiado pelo European Media e Information sob gestão da Fundação Calouste Gulbenkian, levanta preocupações sérias sobre a adoção da tecnologia, nomeadamente a perceção de risco. Quase dois terços dos profissionais (64,4%) acreditam que a IA vai agravar a disseminação de desinformação, e cerca de metade (48%) antecipa impactos negativos na ética e deontologia profissional. 


A ética e a imparcialidade são identificadas como dimensões mais críticas. O Livro Branco sublinha que este défice de preparação pode comprometer o setor num contexto de intensificação da desinformação e utilização crescente de conteúdos sintéticos. O uso da IA nas redações é, atualmente, maioritariamente operacional e não intensivo, centrado em tarefas de retaguarda como pesquisa, transcrição e tradução. Este uso é mais frequente nos media online do que na televisão. 


Segundo os autores, identificam-se três perfis de utilização: inexistente, pontual/individualizado e regular/orientado. O padrão de uso é predominantemente ocasional, concentrando-se sobretudo nos media online, com o uso diário a ser reportado por apenas 11,2% dos jornalistas. A eficiência é o impacto mais valorizado. Observam-se variações por setor: na televisão, o foco está em legendagem e edição multimédia; na rádio, em transcrição e preparação de entrevistas; e na imprensa, em transcrição, revisão e ajustes texto-imagem.


A adoção da IA é, frequentemente, não estruturada e concentrada em tarefas de baixo risco, validação e aprendizagem. O Livro Branco alerta para o "paradoxo da eficiência": a poupança de tempo em tarefas mecânicas é muitas vezes absorvida pela necessidade de aprendizagem e validação. A melhoria da qualidade, e a melhor conversão de velocidade em qualidade, só ocorre se houver escala e boa gestão do processo, e se o tempo libertado for reinvestido em edição e contextualização. Isto exige medir as poupanças, com parte do tempo ganho absorvido por tarefa e reinvesti-las em verificação e edição.

Apesar dos riscos percebidos, persistem grandes lacunas na execução e gestão dos processos. O documento aponta que 64% das redações não possuem código de conduta sobre IA e mais de 80% dos jornalistas não têm sequer cláusulas contratuais relativas ao uso desta tecnologia. Esta fragilidade estende-se à validação de conteúdos, com 63,4% dos profissionais a referir a inexistência de protocolo de validação pré-publicação para materiais assistidos por IA.

Recomendações para o futuro
 

Como resposta a este cenário, o documento formula dez recomendações estratégicas para garantir uma integração ética e transparente da IA, e melhorar a conversão da eficiência em qualidade. Desde logo, aponta a criação de um Observatório Nacional sobre IA e Jornalismo como pilar da governança e transparência, com a missão de monitorizar riscos e oportunidades da tecnologia. Prevê-se também a implementação de normas que tornem obrigatória a sinalização pública de todos os conteúdos generativos. No que toca ao Combate à Desinformação, o documento recomenda o reforço do papel do Serviço Público de Media na promoção da literacia mediática.


Para a Capacitação e Enquadramento Ético, propõe-se um programa nacional de formação e reciclagem para os media. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deverá coordenar o estabelecimento de um quadro nacional de recomendações, traduzindo princípios éticos em rotinas de verificação. É sugerida, ainda, capacitação dirigida a meios pequenos e locais, e a criação de templates operativos de validação para mitigar assimetrias de escala e garantir qualidade.


Em termos de Implicações Práticas e de Gestão de Fluxo, o Livro Branco sublinha a necessidade de medir a poupança de tempo obtida com a IA (em tarefas como transcrição e resumo) e "reconverter" esse tempo em atividades de edição e apuração, ligando a eficiência a uma qualidade verificável. É crucial monitorizar o efeito-tempo para mitigar o Paradoxo da Eficiência, realocando o tempo economizado para edição e contexto. Outra sugestão é expandir o uso de ferramentas de baixo risco já comprovadas (resumos estruturados, organização de dados para briefing) para maximizar os ganhos na pré-produção. Por último, defende-se o Mapeamento Interno das ferramentas de IA por finalidade, para reduzir a dispersão de práticas nas redações.